- Que lixo foi isso? Eu não expliquei o que era para fazer?
- Explicou.
- Preciso explicar de novo?
- Não.
- Então por que fizeram essa merda?
- Nós decidimos junto.
- Como assim? Vocês estragaram tudo, as fotos estão um lixo.
O diálogo foi gravado escondido, quase sem imagens. Vemos apenas flashes do rosto assustado de Alexandra Shevchenko, a Sasha. Ainda com a tinta do protesto no peito, ela arregala os olhos, sua feição é de medo. A voz que cobra explicações é de um homem, ele começa em tom grave e vai elevando a voz até gritar. A cena é parte do chocante documentário Ukreine is not a Brothel (A Ucrânia não é um bordel), um mergulho nos bastidores do polêmico movimento Femen.
O filme revela como as lindas ucranianas que exibem os seios para protestar contra o sistema patriarcal viviam submetidas aos comandos de um homem autoritário. Victor Svyatski, que se auto-intitulava o “pai do novo feminismo”, foi desmascarado pela cineasta australiana Kitty Green, que morou 14 meses no apartamento de Sasha e três colegas do grupo, em Kyiv, para captar o documentário.
Mas tenha calma, leitor, antes atirar pedras. Esse é só o começo da história. O filme acompanha o ápice da insatisfação dessas mulheres com a absurda contradição que viviam. Registra o momento em que elas se confrontam com a necessidade de depor o líder machista.
Militantes Femen no lançamento do filme, no Festival de Veneza, com Sasha (calça vermelha) e Kitty (vestido preto). …
A cena descrita no começo desse texto foi consequência do primeiro ensaio de autonomia. As mulheres não seguiram as ordens de Victor, que as mandou levarem bastões no protesto para bater na polícia. Segundo Sasha, a reação foi ainda pior quando ele foi comunicado que não seria mais o líder. “Ele enlouqueceu, foi muito agressivo, dava gritos e berros”, disse Sasha, na saída da exibição do filme que estava na competição do festival de cinema BFI, em Londres. Quando lhe perguntei se Victor alguma vez a agrediu fisicamente, Sasha deu um suspiro: “Às vezes ele entrava em transe, começava um monólogo enlouquecido, dizia coisas. Não gosto de falar muito sobre isso, a memória me faz mal”.
Talvez Victor não tenha usado força física contra elas, mas o terror psicológico fica evidente. Em momentos diferentes durante as gravações, Sasha tenta explicar porque ela e as outras mulheres do Femen continuam se submetendo aos comandos de um homem. “É como se vivêssemos a síndrome de Estocolmo, criamos uma dependência psicológica dele”. As comparações ficam cada vez mais pesadas: “É como a relação de uma mulher com um homem que bebe e bate nela. Depois ele pede desculpa e ela fica”. E, finalmente: “É como um escravo... alguém que viveu tanto tempo de um jeito que não consegue se ver de outro”.
O filme faz um retrato íntimo e bastante diferente das imagens que vemos na Internet. Depois de gritarem com o peito aberto em frente a dezenas de câmeras e de serem arrastadas por policiais, as ativistas voltam para casa e entram no banho. Nesse momento, somos confrontados com a fragilidade do corpo dessas mulheres. Enquanto a tinta do protesto escorre, vemos as cicatrizes, hematomas, arranhões. São as marcas da repressão policial aos protestos, experiência que cada vez mais brasileiros conhecem e que tem um adicional cruel nesse contexto: na delegacia, os policiais se sentem no direito de passar a mão pelo corpo das manifestantes.
O Femen é hoje o movimento feminista mais midiático e controverso do mundo. Grande parte das feministas não reconhece sua legitimidade. Um dos motivos é que, para chamar a atenção, as ucranianas reproduzem um certo padrão: são jovens, magras, brancas e donas de uma beleza tipo Barbie. No filme descobrimos que a maior parte dos doadores que sustentam as ações do Femen são homens.
Sasha garante que, desde que Victor saiu, o perfil é mais plural: há mulheres de outras “nacionalidades, cores e tamanhos”. Mas, navegando pelo site do movimento, não é difícil notar que o fator estético ainda é uma questão. Outra crítica que o grupo recebe é sobre o modo como protestam. Na foto abaixo, Sasha lança em Paris a campanha “você não compra, eu não vendo”, uma ação para pedir a criminalização dos clientes da prostituição. O argumento delas é que o corpo da mulher não pode ser comercializado, como se fosse um produto. Mas, na imagem abaixo, Sasha usa sua nudez para chamar a atenção. Essa não seria outra forma de transformar o corpo feminino em produto?
Apesar de todas as contradições, não dá para negar a sua coragem. Sasha participou de protestos nua dentro de igrejas e foi uma das manifestantes que gritou “fuck dictator” enquanto corria nua em direção a Vladimir Putin no Salão da Indústria de Hannover, em agosto desse ano. Feito que poucos homens teriam coragem de fazer, muito menos Victor – que manda as mulheres posarem nuas na frente de câmeras do mundo todo, mas hesita em mostrar seu rosto no documentário.
A entrevista com ele é o ponto alto do filme. Na sessão em que o assisti, muitas pessoas gargalhavam enquanto Victor tentava explicar a lógica de “um movimento contra o sistema patriarcal comandado por um líder patriarcal”. Victor diz ainda que as mulheres não têm “força de caráter" ou "desejo de serem fortes" e que, sem sua ajuda, "nunca poderiam ser ativistas políticas".
Por esse erro, ele foi deposto da liderança. Mas foi da sua cabeça que saiu a principal estratégia adotada até hoje pelo grupo: a mídia como prioridade. Sasha diz que o grupo não passa horas debatendo um tema e não produz textos longos porque “não é isso que as pessoas querem”. As reuniões são focadas em pensar na performance do protesto, tudo é calculado para gerar imagens que ganhem as páginas dos jornais e segundos nos noticiários. O fato é que mulheres lindas e nuas ainda são uma das formas mais eficazes de ganhar a atenção dos editores –que, por sua vez, querem ganhar a sua atenção, leitor. Não é fácil romper com a cultura do machismo. E não são só as militantes do Femen que vivem essa contradição.
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