Papa, peitos e psicanálise

A renúncia do papa diz muito do nosso mundo, como nos conta a jornalista Gisela Anauate, que vive em Paris, onde faz doutorado em Literatura.

Após a renúncia do Papa Bento XVI, a catedral de Notre-Dame, em Paris, foi palco de uma insólita celebração: oito ativistas do grupo Femen apareceram de peitos de fora e meias-calças para comemorar a batida em retirada do papa conservador. As ativistas gritaram palavras de ordem, exibindo slogans em seus peitorais, como “crise de fé” e “bye bye Papa”, e empunharam sofregamente bastões contra os sinos expostos na nave da catedral. Uma loira de longos cabelos lisos se agarrou desajeitadamente ao badalo de um dos sinos para fazê-lo soar, mas o efeito ficou mais para uma pole dancing blasfema. Tiritando de frio após ser expulsa da catedral, uma das peladas deu entrevista à TV dizendo que queria que o próximo Papa fosse uma mulher.

Não vou abordar aqui as táticas exibicionistas travestidas de feminismo do Femen (quem sabe em um próximo post?), mas impressiona como a “crise de fé” encenada pelo grupo tem muito confete e pouca profundidade. Já que estamos falando de atuação em frente às câmeras, para pensar em “crise de fé”, prefiro evocar o filme Habemus Papam, do diretor italiano Nanni Moretti. (Na verdade, confesso, os peitos das moças do Femen serviram para fisgar sua leitura. Achei que começar com o Nanni Moretti não ia chamar tanta atenção.) Lançado em 2011, Habemus Papam tem sido considerado uma profecia para o que acaba de acontecer: o filme conta a história (até então fictícia) da demissão de um papa. Diferentemente de Bento XVI, que conduziu seus fieis por oito anos, o Papa de Nanni Moretti não se sente em grado de exercer suas funções antes mesmo de assumi-las. Uma vez eleito pelo conclave, o cardeal americano Melville (interpretado por Michel Piccoli) é tomado por uma crise psicológica grave: simplesmente não consegue ser Papa. Desesperados, os cardeais tentam aconselhá-lo de várias maneiras. Mas o problema do Papa é moderno demais para o Vaticano: a única saída parece ser chamar o melhor psicanalista da Itália, que no filme é vivido pelo próprio Moretti.

O que segue é uma deliciosa história sobre a dificuldade do indivíduo moderno de assumir o controle de sua própria vida. O drama é justamente exagerado à milésima potência quando esse indivíduo deveria ser a autoridade que regeria a fé de bilhões de pessoas. O filme foi criticado pela suposta leviandade com que trata um assunto tão sério – provavelmente as cenas em que o psicanalista organiza um torneio de vôlei entre os cardeais entediados com a indecisão papal contribuíram. A própria Igreja Católica italiana se pronunciou dizendo que o filme era “superficial”. De fato Habemus Papam ignora qualquer discussão aprofundada sobre religião e passa longe de toda intriga política sangrenta à la Dan Brown. Mas é isso que o torna realmente interessante. Um dos temas mais importantes da filmografia de Nanni Moretti é a crise da autoridade, e desde os anos 70 sua câmera não poupa nenhuma instituição: família, escola, partido político, igreja. A escolha do Papa para viver uma crise psicológica é uma hipérbole para evidenciar o quanto nossa sociedade produz fragilidade em massa. O nome do cardeal, Melville, pode inclusive ser lido como uma referência ao homônimo escritor inglês, Herman Melville (1819-1891): o autor de Moby Dick escreveu uma novela intitulada Batleby, o escrivão, sobre um funcionário de escritório que é acometido de uma crise e para de executar suas funções. Além de não trabalhar, não conversa, não reclama e nem dá explicações. Ele simplesmente para. Tudo. Seu bordão e única desculpa, “prefiro não fazê-lo”, ecoa até hoje na obra de muitos autores e artistas contemporâneos.

Habemus Papam na verdade era uma hipérbole até uma semana atrás. Ele parece ter virado realidade. Curioso como o Vaticano abraçou a “superficialidade” do filme de Moretti na hora de justificar tamanha reviravolta: nenhuma palavra sobre o escândalo Vatileaks, demissão de mordomo ou denúncias de falcatruas no Banco do Vaticano. Só um “prefiro não fazê-lo” pronunciado por Bento XVI em latim e louvado por aí como lição de humildade. A renúncia do Papa-Bartleby real está mais para paródia de mau gosto.

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